SANTA INÊS, SAUDADE INFINITA
Weliton Carvalho
Santa Inês completou 57 anos de emancipação nesta quarta-feira, 14 de março de 2024. Costumo dizer que nasci em Bacabal e abri os olhos em Santa Inês (e para Santa Inês). Digo isso, vez que com sete dias de nascido fui para Santa Inês. Em Santa Inês formei todo o meu substrato existencial. A Santa Inês devo toda minha cosmovisão. Foi ali na Rua da Raposa que percebi que eu era um ser dotado de vida e consciente desse milagre que é nascer. E penso, sinceramente, que a poesia que habita em mim tem suas entranhas na cidade. Tanto isso é verdade que tenho um livro de poesia com todos os poemas ambientados na Princesa do Vale do Pindaré. Santa Inês é, em mim, uma saudade infinita.
Meu pai, Aldir Carvalho, chegou em Santa Inês na década de 60 e deixou a cidade nos anos 2000 para morar em São Luís. Embora nunca tenha exercido cargo público, contribuiu com a comunidade. Foi o primeiro presidente da Associação Comercial da cidade, participou da conclusão do country club (de saudosa memória), liderou a construção do prédio da Loja Maçônica Sétima Luz, quando ali foi venerável pelo período de três anos. Dedicou quase quarenta anos de sua vida à contabilidade na cidade de Santa Inês. Recebeu o título de cidadão de Santa Inês.
Dois irmãos de minha mãe viveram em Santa Inês: João Luis Sousa e José Gabriel Sousa, empresário e médico, respectivamente. Curiosamente ambos foram vice-prefeitos da cidade. Infelizmente ambos já falecidos.
Em Santa Inês estão meus amigos de infância, os quintais telúricos, as brincadeiras de rua, seus personagens pitorescos, a natureza no seu estado mais puro. Aí ainda tenho primos. Aí deixei tantos amigos de infância: Hélio, Nonatim, Deutz, Ném e tantos outros (alguns, infelizmente, já falecidos). O tempo e um coveiro implacável. Olho para a minha cidade e muitos estão mortos. Como no poema de Manuel Bandeira: “─Estão todos dormindo/Estão todos deitados/Dormindo/Profundamente”. Com dez anos de idade deixei Santa Inês e aquilo foi uma dor enorme. Só recentemente consegui expressar essa dor em um poema denominado Reino, cujo primeiro verso é este: “Santa Inês foi o meu reino que aos dez anos perdi”. Tive a honra desse poema ser musicado por Vicente Telles (ninguém poderia fazê-lo melhor, vez que Vicente foi meu vizinho na Rua do Flamengo). Vicente Telles me deu esse presente inesquecível. E abro um parêntesis aqui para dizer que os políticos de Santa Inês precisam olhar para a classe artística de nossa terra. Vicente Telles, Lourival, Dafé, dentre outros. E cultivar a memória de outros tantos. Raimundo Soldado, Lobato. E tantos outros que não conheci, mas que existem e são valorosos. A propósito, deixou aqui o link do poema musicado pelo Vicente Telles: https://www.youtube.com/watch?v=dhQGKG7jvL4.
O Ferreira Gullar diz na sua obra-prima, Poema Sujo, que “a cidade está no homem/quase como a árvore voa/no pássaro que a deixa.” Ou seja: a cidade da nossa infância acompanha o ser humano por onde quer que ele vá. Não há existência sem memória.
Carrego comigo todo um imaginário urdido em Santa Inês. Não há um dia que não agradeça a Deus pela graça de ser um provinciano. Ainda é dessa província que penso o mundo. Se é assim, por que evito voltar a Santa Inês? Sim, confesso que tenho sérias dificuldades em voltar à cidade. São razões puramente sentimentais. A cidade que tenho comigo não é mais a Santa Inês real. E tenho muitos lutos mal resolvidos. São lutos familiares e de amigos de infância. Principalmente dos amigos de infância que viveram e morreram no abandono. Isso me sangra a alma. O vereador Josino me agraciou com uma homenagem. Em primeiro, penso que é uma homenagem mais fruto da liberalidade do que merecimento. O que faço por Santa Inês, verdadeiramente, é amá-la. E, por evidente, elaboro poemas sobre ela. Nada mais do que isso. O fato é que estou me preparando (não é fácil achar espaço na agenda). E depois tenho essa dificuldade de fundo emocional. Sou confessadamente um sujeito saudosista e melancólico. E penso que se assim não fosse não escreveria a poesia que escrevo. Tenho uma teoria comigo de base completamente intuitiva: todo poeta é melancólico, ainda que inconscientemente.
Vou me permitir publicar aqui o poema dedicado ao vereador, o que talvez ajude a me explicar junto ao meu dileto amigo Josino Catarino. Depois de sua de sua leitura, talvez meu gesto de não acorrer de pronto à Câmara Municipal de Santa Inês para receber a homenagem não lhe pareça descortesia ou descaso. É verdade que não sou dado a receber homenagens. Sempre penso que não as mereço. Mas no caso presente a esse motivo, uma forte fundamentação emocional se agrega.
SEM RETORNO
a Josino Catarino
Santa Inês, facho de azul,
que em mim rasga e delira:
dilacera a alma e o tempo,
dores infinitas e saudades;
remover de fatos diluídos
na ferrugem de Cronos –,
entidade bárbara à matéria
que apaga até os vestígios;
a memória refaz o mundo
na guerra contra a morte –,
a derradeira pulsão da vida.
Santa Inês já outra cidade,
onde antes o meu castelo:
todo o meu reino perdido.
Rogo a Deus que Santa Inês encontre a sua verdadeira vocação e que seu destino seja correspondente a de sua padroeira, ou seja, de muita luz. É uma cidade topograficamente privilegiada. É uma cidade que pulsa e anseia por se desenvolver na medida da sua importância estadual. Fico imensamente feliz quando leio qualquer notícia alvissareira no Agora Santa Inês, canal fidedigno pelo qual me mantenho informado sobre as coisas e pessoas da minha cidade. O primeiro mandamento a um político municipal é que ele ama a sua cidade, que tenha devoção por ela. A única coisa com que a poesia pode contribuir é comover as pessoas, tocá-las para contemplar e praticar o belo.
Muito a propósito, escrevi um poema com o estranho título QUASAR. Bem, quasar é uma fonte do elemento rádio de origem cósmica, de aparência estelar Trata-se de um objeto astronômico extremamente luminoso. Digo isso para encerrar essa quase crônica com esses versos: “infância, movimento de atualizar os desejos/que habitam nas províncias mais secretas –:/ Santa Inês, quasar que em mim delira”.
Weliton Carvalho é poeta e professor universitário.