FILME “EXISTENZ” DE DAVID CRONEMBERG

FILME “EXISTENZ” DE DAVID CRONEMBERG
“Se as portas da percepção fossem abertas, as coisas surgiriam como realmente são: infinitas” ( William Blake )
Publicado em 21/11/2023 às 10:49

A IMAGEM QUE SIMULA A IMAGEM QUE SIMULA A IMAGEM …

Em “O mito do cinema total” de André Bazin, o cinema é entendido como o resultado de um desejo e necessidade de uma arte que duplique a realidade. O projeto original do cinema faria parte de uma busca obsessiva, levada a cabo por inventores e pesquisadores (“possessos”, “ profetas”, nunca “ cientistas”segundo Bazin), de uma técnica que permitisse uma reprodução integral da realidade aparente. 

O filme “Existenz, do canadense David Cronenberg, é uma ficção científica pós-moderna cyberpunk”, que dialoga diretamente com questões sobre a divisão do mundo entre o real e o interativo, a “falsa (ou a fuga?) duplicação da realidade”. Somos apresentados a um mundo complexo e hiper-real, onde as percepções humanas, provenientes de experiências vividas, são substituídas por imagens simuladas e no qual indivíduos que divulgam novas ideias, encaradas de forma extremamente ameaçadora por instâncias da sociedade, precisam se esconder para sobreviver. Não vemos computadores, laboratórios ou quaisquer outros objetos ou ambientes futuristas sempre presentes em filmes de ficção científica. 

O jogo, que dá título ao filme, constitui um revolucionário sistema de imersão interativo em ambientes virtuais desenvolvido pela empresa Antenna Research. Para jogar existenz, são necessários três dispositivos biotecnológicos: um “game pod” (console de videogame feito de DNA e órgãos sintéticos, obtidos através da criação de anfíbios mutantes), uma “bio-porta” (orifício, similar a uma tomada, instalado no final da medula espinhal do jogador) e um “UmbyCord” (espécie de cordão umbilical para conectar o console ao sistema nervoso central dos participantes do jogo). 

Estes aparatos bombardeiam o sistema nervoso com estímulos neurais até que seja impossível distinguir sua artificialidade, ou seja, até a instituição de um simulacro tridimensional, palpável e extremamente plausível, pautado no que o filósofo francês Jean Baudrillard chama de “geração de modelos de um real sem origem nem realidade: hiper-real”. A raiz da discussão do filme reside, portanto, em questionar até que ponto o ser humano pode ser seduzido ou não por este simulacro e se existem limites para a total aceitação dos modelos e pressupostos colocados. 

A autora do jogo, Allegra Geller junto com o estagiário Ted Pikul (Jude Law) são forçados a fugir do atentado executado por um grupo de extremistas denominados “movimento realista” que defende a preservação da integridade corporal, onde o único meio para eles, da preservação dessa integridade, é o extermínio dos projetistas de jogos de imersão e a destruição da fábrica de consoles biotecnológicos.  A trama então segue seu caminho para uma discussão entre o virtual e o real, quando a criadora do jogo convence o não portador da bio-porta Ted Pikul a entrar no “jogo”. O diretor formata então a nossa atenção para o que considera inevitável: a fusão dos ser humano e tecnologia.

No decorrer da estória observamos que o jogo Existenz constitui o cenário do jogo Transcendenz, é um jogo dentro do jogo. Nessa metalinguagem virtual, Cronenberg nos faz crer que a diferenciação entre realidade e simulação colocada inicialmente não existe. Nessa metalinguagem interativa, o roteiro do filme nos leva a uma questão maior:  O mundo existe ou é um conjunto de ambientes virtuais que integra um simulacro global?

Existenz é um filme que discute se realidade virtual irá introduzir uma cultura para além da representação, uma cultura na qual imagens não mais se referirão ou farão a mediação de uma realidade socialmente dada. Tudo estará engajado em um ambiente eletrônico que se tornará “virtualmente” indistinto das realidades sociais e materiais que as pessoas habitam ou desejam habitar. O diretor David Cronenberg ,demonstra com o filme, que a possibilidade de acessar e interagir em diferentes níveis de realidade virtual pode nos levar à total perda de índices de localização e referência dos limites que separariam o jogo da realidade.

A RETÓRICA DA IMAGEM DENTRO DE UMA FICÇÃO CYBERPUNK”.

O diretor David Cronemberg, usa de recursos da estilística para transformar seu filme em um jogo psicológico.  A figura de linguagem é a base para a construção do seu enredo futurístico. Somos levados pelo enredo, sem saber ao certo o limite da realidade encenada e realidade do jogo. O filme vai ao extremo de deixar em aberto o final: ao subir os créditos ainda nos perguntamos se acabou o jogo ou não.

Ao provocar sensações sinestésicas nos próprios personagens, o diretor trabalha discursos e diálogos inversamente com a imagem que vemos: uma conversa normal fora do jogo configura de fato uma volta ao mundo real? ou ainda, uma imagem do mundo que parecia virtual agora se transformou no real? a dor sentida no jogo passa para a realidade agora? Tudo parece confuso, se analisarmos de forma isolada. Mas “Existenz” é um verdadeiro quebra cabeça em que tudo se parece resolver com o final: O jogo que vemos estava dentro de um outro jogo: “transcendenz”. 

Esse trabalho de metalinguagem, que o filme propõe, nos leva a entrar perfeitamente no enredo e entender seu desfecho. O trabalho da imagem, da representação, da montagem, da direção de arte e todo o discurso são construídos para entramos no jogo. A imagem denota sua função, quando estamos em Existenz, porém ela passa a ser associada(conotação) quando entendemos que há um jogo dentro do outro. Existenz está dentro de Transcendez e é essa comparação é que nos faz entender toda a trama que vemos até o desfecho.

Longe de ser somente um filme de ficção científica, Existenz é, antes de tudo, um perfeito painel de discursão sobre a realidade virtual. É também, um filme que desconstrói o próprio clichê do gênero (vide cenários), nos colocando em xeque sobre o uso dessa realidade construída como fuga da realidade vivida. Um filme essencial que trabalha discurso, imagem e reflexão.

©José Viana Filho é Bacharel em Cinema pela UNESA(RJ) e Mestre em Políticas Públicas pela Faculdade Latino Americana de Ciências Sociais.
Email: [email protected]  Blog: www.josevianafilho.blogspot.com.br