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O Alcoolismo e a Cultura: um pacto com o Diabo ou ignorância compulsória?

O Alcoolismo e a Cultura: um pacto com o Diabo ou ignorância compulsória?
Publicado em 19/05/2024 às 10:21

Mhario Lincoln é advogado, jornalista, palestrante em grupos de auto-ajuda e presidente da Academia Poética Brasileira.

“Sentir o desejo de repetir algo porque é prazeroso não é o mesmo que ter necessidade de repetir algo por ser intolerável ficar sem ele”. (Salomon).

Arte: MHLai


@Mhario Lincoln

“Sentir o desejo de repetir algo porque é prazeroso não é o mesmo que ter necessidade de repetir algo por ser intolerável ficar sem ele”. (Salomon).

O poema do imortal APB (Academia Poética Brasileira), poeta Rogério Rocha, abaixo transcrito, é simples, mas possui uma profundidade muitas vezes despercebida. Sua relevância é destacada por citações de dois grandes pensadores: Liev Tolstói, que disse “não há grandeza onde não há simplicidade, bondade e verdade”, e William Golding, que afirmou “as maiores ideias são as mais simples”. Os versos do filósofo maranhense refletem as experiências de muitas famílias que enfrentam a dependência química. (Vide Ipsis litteris):

ASSIM É A VIDA 

Por Rogerio Rocha


a cachaça na boca

desceu com jeito

 rasgou a garganta

subiu à cabeça

 por causa dela

cantei músicas

sem saber a letra

 sorri e dancei

fiquei agressivo

 assim é a vida…

 fui feliz enquanto

durou aquela brisa

 O alcoolismo é um problema de saúde pública devastador. Ver um ente querido se entregar ao álcool é aterrorizante. A livre divulgação e propaganda de bebidas alcoólicas, especialmente a cerveja, sem regulamentação adequada, contribui para a dependência. Isso porque, o lúpulo, utilizado na fabricação dessa bebida, é da mesma família da “cannabis”, o que pode aumentar a predisposição à dependência. Mas como? Dependência de cerveja?

Sim! A cerveja contém principalmente álcool etílico, uma substância psicoativa que causa, entre outros males, a depressão do Sistema Nervoso Central. E isso leva a sonolência, descoordenação motora e muscular, diminuição da capacidade de reação, atenção e compreensão, além da perigosíssima amnésia alcoólica, onde o indivíduo ‘apagado’, pode cometer graves crimes e, no outro dia, não se lembrar de absolutamente nada. E mais: segundo dados do Institute for Health Metrics and Evaluation (IHME), a ingestão de álcool é um dos principais fatores de risco para a maioria das mortes e incapacidades no Brasil.

 Então, com base nessas avaliações, por que o álcool e drogas estão tão intimamente ligados a várias expressões artísticas? Porque a relação entre álcool e arte, especialmente poesia, é complexa. A idealização romântica da autodestruição como forma de genialidade criativa é abordada por Andrew Solomon em “O Demônio da Meia-Noite”, onde ele menciona o quanto é difícil sair dessa rotina alcoólica, ao produzir ou tentar produzir uma obra intelectual (sem o uso do álcool ou narcóticos): o bom seria “sentir o desejo de repetir algo porque é prazeroso. E não, ter necessidade de repetir algo por ser intolerável ficar sem ele”.

Assim, artistas, ao longo da história, têm frequentemente explorado os limites da mente e do corpo, muitas vezes recorrendo a substâncias que alteram a consciência para buscar inspiração ou escapar de pressões psicológicas e emocionais. Entretanto, esse comportamento pode ter consequências devastadoras, incluindo dependência, deterioração mental e física, e até mesmo a morte por suicídio.

Em tempo: nos últimos 10 anos aumentou consideravelmente a inserção de jovens, a partir dos 14 anos, adultos e idosos, no uso incontrolável da cerveja. Há 10 anos, tínhamos 8% da população, com tendências alcoólicas. Hoje, esse índice atinge 27,3%. Por outro lado, a história está repleta de exemplos de artistas talentosos que perderam suas vidas devido ao abuso de álcool e drogas. Nomes como Kurt Cobain, Amy Winehouse, Jean-Michel Basquiat, Jim Morrison, Jimi Hendrix, Janis Joplin, Ernest Hemingway, Sylvia Plath, Vincent van Gogh, Elvis Presley, Michael Jackson e Mark Rothko são alguns dos mais notáveis. Embora nem todos esses casos sejam suicídios diretos, o abuso de substâncias psicóticas desempenhou um papel significativo em suas vidas e mortes.

O que mais me chama a atenção nessa história é a liberdade que as indústrias da “cervejinha inocente” têm na grande mídia, sempre associando a uma imagem de vitória e sucesso social, no uso dessas chamadas “cervejas de grife”. Esse marketing massivo, presente em eventos esportivos e programas de grande audiência, atrai jovens e acaba ‘normalizando’, de forma natural, o consumo do álcool. A presença constante de tais propagandas contribui para o aumento do consumo entre jovens, levando a problemas de saúde e dependência.

Substâncias químicas como inspiração. (arte: MHLai).

Especialistas como Kay Redfield Jamison, David Nutt e Drew Pinsky discutem a correlação entre criatividade e a saúde mental. Eles enfatizam que a criatividade não está inerentemente ligada ao uso de substâncias, mas a prevalência de transtornos de humor entre artistas pode conduzir ao uso de drogas e álcool como uma forma equivocada de autogestão.

 Finalizo com um depoimento tocante de Craig Ferguson, que disse: “O álcool arruinou-me financeira e moralmente, partiu meu coração e os corações de muitos outros. Mesmo que tenha feito isso comigo e quase me matado e eu não tenha tocado uma gota de álcool em dezessete anos, às vezes me pergunto se poderia me safar bebendo um pouco agora. Eu me inscrevo totalmente na noção de que o alcoolismo é uma doença mental porque pensar assim é claramente insano”. Craig Ferguson, apresentador de TV, comediante, escritor e ator, venceu a batalha contra o alcoolismo, mas não sem profundas cicatrizes. Que este artigo valha como, pelo menos, uma reflexão responsável.

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Mhario Lincoln é advogado, jornalista, poeta, palestrante em grupos de auto-ajuda e presidente da Academia Poética Brasileira.